Festejatória

Publicado em Andei Pensando..., Cotidiano, Relacionamento e Psicologia.


Festejatória

“Haverá um tempo em que você não haverá de ser feliz...”; se essa é uma frase aparentemente triste (Marcelo Jeneci na música “Felicidade”) em outra canção a banda Pato Fú nos alerta com a expressão “Vai diminuindo a cidade... vai aumentando a simpatia, quanto menor a casinha, mais sincero o bom dia...” logo nos primeiros acordes de “Simplicidade”.

Duas formas bastante interessantes para reinterpretarmos as várias nuances do passar das vidas a nossa volta.Muito bacana se perceber o quanto que palavras sutis são capazes de retratar de forma tão intensa o óbvio que muitas vezes não queremos ver, quer por tanto estarmos focados em metas sempre prioritárias ou por trabalharmos com o errado conceito de que apenas o que é denso, sofisticado ou acadêmico é que pode contribuir para nosso crescimento.

Recentemente assisti a um vídeo em que o preletor, ao se referir a uma tragédia pessoal superada nos últimos momentos, disse ter mudado dois hábitos; o primeiro deixar de querer ser “o certo” para passar a ser “o feliz”, e o segundo que deixaria de colecionar ótimos e caros vinhos, sagradamente armazenados nas prateleiras da adega, e passaria a colecionar os médios e baratos que, sem cerimonia, são abertos a qualquer momento para se comemorar praticamente qualquer coisa boa.Esse conjunto de ideias que acabei de colocar vem me incomodando já há algum tempo, pois periodicamente tenho acompanhado pessoas que não mais conseguem se alegrar com os pequenos, mas consistentes e intermitentes, prazeres que nos são proporcionados.

Tudo em razão de um absurdo contexto que persiste em nos dizer que ser feliz só é permitido para aqueles que galgam as grandes vitórias e, assim mesmo, sem o direito de fracasso posterior.Se você faz parte desse quadro, te peço que dedique um pouquinho de teu tempo para uma reflexão básica: nascemos festejando e sendo festejados. Sobra alegria pra todo lado.Com raras exceções, nossa chegada a esse mundo é uma verdadeira estreia cercada de expectativas e projetos e, passado o choro da palmadinha essencial, já vamos entrando em clima egocêntrico tipo assim “tô aqui pra ser feliz”.Tudo belissimamente correto.

A criatura se alegrando com a presença do Criador em todos os detalhes ao seu redor. Tudo parece ser interessante, valioso e digno de nosso desejo.Mas, nos últimos tempos, que sinceramente não consigo traduzir em números, essa humana característica de, tendo desejos, busca-los por todas as vias, se deliciando com as conquistas ou ao menos aprender com os insucessos, vem ficando escondida atrás do medo daquilo que outros possam julgar a nosso respeito.Sem cerimônias, falamos desse medo do futuro, como se o mesmo fosse estranho e inconcebível. Futuro existe para se ter medo mesmo, pois tememos tudo aquilo que desconhecemos.

Tudo isso é muito normal. Errado, ou até mesmo loucura é querermos esse domínio sobre tudo.Estamos substituindo a alegria do ato de sorrir enquanto fazemos ou esperamos algo acontecer, pela mecânica sisudez, de têmporas franzidas no aguardo da grande meta a ser alcançada a todo custo. Desgastamo-nos tanto nesse processo de auto boicote que, quando alcançado o objetivo, parece que o único desejo plausível que nos resta é descansar.

Mas, se o mais comum é o time campeão comemorar por dias enquanto o derrotado se retira para o descanso e meditação, porque será que mesmo vitoriosos, ou felizes com boas notícias chegamos a parecer como soldados abatidos no final de uma batalha?Está ai algo que me deixa indignado: “pessoas, que não exercitam o ato de brindar os pequenos bons momentos”. Como pode ser essa coisa doida, de “descansar de ser feliz”?Está me parecendo que da mesma forma como estamos sendo levados a reaprender a óbvia necessidade do ato de caminhar e prestar atenção aos alimentos para nos salvarmos das venenosas facilidades enlatadas ou distribuídas em outras diferentes formas de acomodação, estamos precisando redescobrir a naturalidade da comemoração pelo viver. Temos que recomeçar a treinar a recepção da felicidade, diminuindo nossa timidez diante da mesma e não nos sentindo culpados por sermos detentores desse sentimento, em um mundo que insiste em propagar que sofrer e reclamar da vida são símbolos da normalidade.Não posso me culpar de estar em um momento de bem estar.

Aprender a festejar é aprender a reutilizar nossos órgãos sensoriais em prol de uma percepção mais aguçada dos estímulos a nossa volta, usufruindo de cada passo da travessia e não apenas dos objetivos finais.Faça festa, contagie e ensine os seus a se exercitarem nessa prática. Garanto que um dia irão te agradecer.Então, não se esqueça de sempre ter um bom e barato vinho guardado em tua dispensa, pois nunca se sabe o que teremos de festejar a qualquer momento.Deleite-se com as boas novas por menores que sejam.



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