Medo de gente
Publicado em Andei Pensando..., Educação, Cotidiano, Relacionamento e Psicologia.
O período da infância é recheado de coisas que a gente jamais esquece e outras tantas que, além disso, também não entende. A infância deve ser coisa feita para se sentir, guardar e relembrar.Algumas dessas coisas chegam são insólitas, outras brotam de conflitos internos, mas não podemos ignorar que existem aquelas que nos foram colocadas de forma inocentemente sádica, por adultos sem coisa melhor para fazer.
Como exemplo, precisamos lembrar que a maioria de nossos medos está ligada a algum desnecessário terrorismo ou interpretação mal feita por aqueles que se julgam ou são vistos como “maduros” (expressão também usada para definir frutas pré-podres).Sendo humano, devo admitir que em minha juventude, sempre tive medo de situações desconhecidas e que a pior de todas era a “dos fantasmas”. Esse negócio de gente morta me deixava estressado.
Só de pensar que em certas situações, inclusive para fazer algum trabalho de escola na casa de amigos, tinha que passar ao lado do cemitério da cidade, chegava a perder o apetite, situação extremamente rara em meu caso. Assistir filme de terror, então nem se fale!De tanto ouvir histórias de assombrações e afins, cresci apavorado com a possibilidade de, a qualquer momento, me encontrar com zumbis e similares.Quando me via diante da necessidade de caminhar próximo ao muro do tal condomínio de lápides, buscava encontrar o remédio mais palpável nas orações, preferencialmente na companhia de alguém, até mesmo de um desconhecido, se fosse o caso.
Nessas horas o lema era “antes acompanhado que sozinho”.Hoje chego a ficar incomodado com a coragem, destreza e até mesmo frieza, que a maioria de jovens e crianças demonstra diante desses filmes de terror e mesmo imagens reais de tortura e morte, costumeiramente transmitida via internet, jornais e TV.Vendo isso, cheguei por alguns momentos a acreditar na boa nova dos adultos, que inadvertidamente criavam aberrações mórbidas dentro da cabeça das crianças, tivessem parado com aquela mania tola e descompensada.
Mas, como tudo que é bom dura pouco, acabei descobrindo que os tais fantasmas só mudaram de forma e endereço.Se por um lado fui educado com medo do invisível, as novas gerações vêm sendo educadas para terem medo de coisas visíveis.Adultos desencantados com a vida estão conseguindo a proeza de espalhar gratuitamente o medo entre vivos.
Gente tendo medo de gente, como se fossemos predadores naturais da própria espécie. A hipótese de confiar abertamente no melhor amigo, outrora tão óbvia, tornou-se assustadora e muitas vezes desaconselhável.Coerente nos dias de hoje, é ser desconfiado e sempre andar com um vasto repertório de respostas prontas e, dentro do possível, não comprometedoras.Essas coisas me fazem lembrar de um texto em que o escritor Rubem Alves questiona o quanto as pessoas andam trocando os convites para jantar em casa, por encontros aparentemente mais informais e descontraídos em mesas de bares e restaurantes, sob a alegação de não se ter ou dar trabalho aos outros, quando o que realmente anda acontecendo é decorrência direta do receio de receber pessoas.
Receber, chega a parecer uma atitude perigosa e atormentadora.Terrível ter que trabalhar com a hipótese da invasão do esconderijo, em que algumas casas se transformaram.Não é medo de bandido ou alma penada. É medo do fogo amigo.Se desde sempre, um bom “bate papo” é algo acalentador, mesmo quando esporádico, hoje nos é possível desfrutar dessa benesse on line, através dos MSNs e Orkuts da vida, porém, para alguns, esta comodidade se estabelece de tal forma que chega a eliminar o “converse” de corredor, intervalo de aula, trabalho ou banco de praça, para os mais saudosistas.
Quando on line, o controle do teclado e do mouse, garantem a preservação da intimidade, coisa que só quem desconhece as próprias habilidades receia.Não sou inocente a ponto de dizer que devemos confiar em toda e qualquer pessoa que apareça, porém lhe garanto que quando desconfiamos exagerada e continuamente, passamos a viver em um estado de tensão capaz de inviabilizar a percepção do prazer, quando esse se apresenta. Como disse o poeta, “amigo é coisa pra se guardar...” e não pra se evitar.
Bem, na hora de revisar esse texto, me dei conta de ter repetido sete vezes a palavra “coisa”, e reparei que sempre chamamos de “coisa” aquilo que não compreendemos claramente, ou seja, aquilo que temos medo. Só temo aquilo que não me sinto capaz de compreender.Talvez, se nos déssemos a conhecer mais as pessoas, às temeríamos menos, e isso permitiria o desfrutar dessa “coisa” chamada ser humano.Que tal tentarmos?