Misericórdia
Publicado em Andei Pensando..., Educação, Cotidiano, Relacionamento e Psicologia.
Certa vez, durante uma conversa informal com alguns conhecidos, uma amiga começou a tecer um longo e lamurioso véu de reclamações e desalentos a respeito do local em que trabalhava, a mais de vinte e tantos anos.Falava de colegas que nunca se portavam como amigos confiáveis, de um chefe com fortes indícios de formação nazista, de rotinas primitivas, paredes opacas, ventiladores barulhentos e cafezinho sem graça.
O pior de tudo, é que enquanto esse assunto se desenrolava a partir de sua boca, outras pessoas davam corda ao tema, utilizando expressões do tipo: “eu sei bem o que é isso”, “se eu estivesse em seu lugar...”, e a famosa “pelo menos você tem saúde”.A coisa ia nessa toada sonsa, cheia de frases óbvias, até que inesperadamente, como se fosse um raio em pleno céu azul, alguém soltou a seguinte pérola: “- Misericórdia, isso não é lugar para um filho de Deus trabalhar!”. Pronto. Conseguiram tirar-me da atitude de mero ouvinte contemplativo.
Se estamos inseridos em um grupo ou situação de trabalho, estudo, amizade ou família, que não vai de acordo com nossas expectativas, esse passa a ser a grande oportunidade de exercitarmos nossa essencial característica humana de interventores.Se em um certo lugar existem problemas, é justamente ali, onde devem estar os que se consideram merecedores de se intitular “filhos de Deus”.Note que humanos são aqueles animais que quando indignados diante de um fato, buscando respaldo em suas experiências anteriores, se posicionam.Sem a menor sombra de dúvidas, o tempo que gasto lastimando meu destino, é o tempo que deveria utilizar projetando meus castelos.
Sinceramente acredito que a pessoa não tinha noção do que estava dizendo, e por isso tenha erroneamente utilizado a palavra misericórdia com o sentido de palavras como miséria, desgraça ou coisa e tal.Ter misericórdia significa ter compaixão pelo miserável, ou seja: se estiver diante de pessoas vazias, diretas ou indiretamente agressivas, a ponto de vampirizarem o meio em que estou, minha função passa ser a de respirar fundo, relembrar a razão que me levou a estar ali e declarar por palavras ou atitudes o quando discordo daquela situação, dispondo-me a auxiliar aqueles que também sofrem com tal disparate social. Se existe lugar para um filho de Deus estar, é justamente onde ele possa mostrar seu equilíbrio, confiança e destreza no uso de seus conhecimentos.Lembre-se que conhecimentos são ferramentas que, quando guardadas no fundo de uma sacola se tornam absolutamente inúteis.
Tão inúteis quanto àquela conversa em que enquanto um reclama da vida que tem, sem se ater ao fato de que está expondo sua própria incompetência interpessoal, outros tentam considerar normal alguns acontecimentos que, no máximo, podem ser chamados de comuns.Comum é aquilo a que nos acostumamos sem questionar, enquanto que normal é a realidade, permitindo a discussão e viabilizando a felicidade. É comum encontrarmos um ambiente tenso, e é normal nosso desejo de transformá-lo.
As palavras dizem muito mais quando entendemos sua origem: córdia-cardíaco-coração. Misericórdia é dar-se de coração para o miserável.Por favor, não pretendo persuadi-lo, nesse mundo tão cheio de desconfianças, a se doar despretensiosamente a alguém.O que sugiro, é que pensando quase que exclusivamente em você mesmo, pratique a misericórdia que, ao transformar o outro, te permite se esbaldar no alento de onde estiver inserido.
Certa vez Gilberto Gil cantou que “o melhor lugar do mundo é aqui e agora”, e apesar de termos o direito de preferir outros, não dá para negar que somente no aqui e agora, podemos fazer algo de real por nossa própria vida.Lembre-se: se não pode com eles, transforme-os a teu favor, e pare de se conformar com a mísera idéia de que “o que não tem remédio, remediado está”.